14/09/07

...E a China aqui tão perto - Parte I - "Cadáveres Como Nunca os Viu"

"O mundo é mesmo redondo", estou farto de o dizer.

São inúmeras as situações em que nos deparamos com quadros repetidos, referências subitamente concretizadas, associações imprevistas...
Levando quase a pensar que as pontas soltas na narrativa humana não existem.

Tal se tornou mais uma vez verdadeiro com a coincidência da vinda do Dalai Lama a Portugal - e polemicazetas que mais uma vez suscitou - com a recta final da exposição
do "Corpo Humano Como Nunca o Viu", patente há meses lá para os lados da Rua da Escola Politécnica, com uma afluência de visitantes digna de registo....

...E como blogar é o exercício supremo do narcisismo, deixo duas metades da minha sensibilidade sobre a ocorrência desse alinhamento cósmico.

Começo pelo final, esclarecendo que, contrariamente a ter ido ver o Dalai Lama - naquela espécie de mega-show-pop da transcendência pagã - a visita à exposição d' "O Corpo Humano como Nunca o Viu" - tradução benévola do escorrido original "Bodies", que facilmente poderia dar em português uma coisa como "Cadáveres", dependesse do tradutor - sempre esteve fora dos meus planos.

A referida exposição, que de início me pareceu um conceito grosseiro e depois um evento grotesco, evoluiu na minha óptica para algo ainda muitíssimo mais grave.
Pelo que o facto de acertar o seu final com o de Setembro, apenas me interessa como blogador na medida em que referi-la agora, comentando-a em retrospectiva, já não poderá ser tido como nenhuma tentativa pateta de boicote a esta feira de talho, charcutaria e fumeiro que tem ombreado em público com as suas congéres de hipermercado mais concorridas.

Não sei, mas fazer romagem para ver seres humanos esfolados que dão eurinho sonante a quem lhes recebe das entradas, provoca-me muita repulsa.
Vá-se lá saber porquê...

Já tenho ouvido da parte de gente que respeito basta argumentação no sentido de justificar a existência da dita exposição.
Mas o esforço argumentativo, mais me parece nalguns casos tentativa de remissão pela cedência à pulsão voyeurista incontrolável que os faz voar a contemplar o horror.

O mesmo confuso sentimento de pudor que obrigou a organização a um intróito rocambolesco do seu site, em que mistura num caldeirão transbordante a argumentação cienticista com a histórica, a filosofista com a pedagógica, a legalista com a ética, numa mescla sem cor nem nexo, que não fundamenta nada.

A) "O estudo da anatomia humana funcionou sempre sobre um princípio básico: Ver é Saber. Este mesmo princípio levou as culturas egípcia, grega, romana e islâmica a uma compreensão cada vez mais científica da forma humana. As dissecções públicas durante o Renascimento aumentaram este conhecimento, estabelecendo as bases para as nossas instituições médicas modernas e para esta exposição".

Logo:
"Ver é saber" é um princípio último - exacto fundamento das experiências nazis em campos de concentração. Ninguém fundamenta historicamente as vastas e dispendiosas atrocidades clínicas nazis com a causa do sadismo ou da futilidade. "Ver e saber" foi o mote de testes de resistência eléctrica, térmica, à dor ou a variações de pressão; inoculações de doenças e privação de tratamento; inseminações, esterilizações e castrações; lacerações, ablações e amputações;...
E todas elas, sem margem para dúdida, contribuiram com sucesso - numa pânorâmica monstruosa - para uma "compreensão cada vez mais científica da forma humana".
Mas a Ciência - digna de maiúscula - não legitima tudo.


B) "A exposição utiliza espécimes humanos reais para lhe oferecer um manual visual do seu próprio corpo. Muitos de nós não sabem o que temos debaixo da pele – como o corpo funciona, do que necessita para sobreviver, o que o destrói, o que o reanima. O Corpo Humano como nunca o viu, é uma tentativa de remediar este infeliz conjunto de circunstâncias. Aproveite o conhecimento obtido na Exposição, alargue-o e utilize-o para ser um participante informado nos seus cuidados de saúde."

Logo:
Gratos pela diligência com que somos resgatados do "infeliz conjunto de circunstâncias" que nos mantinham na escuridão - como eu tristemente continuo... - vamos aos 100.000, pela mão de uma exposição que nos vende com sucesso infantil o marketing da sua verdade imprescindível, ser informados das verdades do mundo de que andávamos arredados.
Existe uma diferença subtil mas elementar entre as imagens de um acidente e as imagens de um acidentado. Pagando o preço que a contenção e o básico bom-senso exigem, não há seminários sobre álcool na estrada com mortos exangues em palco, não há filmes sobre dependências com overdoses em tempo real, não há informação nas escolas sobre comportamentos sexuais de risco com sexo explícito e em grande plano.
Porque existe um limite.
E "mostrar" não legitima tudo.


C) Num canto surrealista do site da exposição recolhemos toda a informação pertinente sobre "Doação de Órgãos" e "uso de cadáveres".
"
A dissecação de cadáveres e a sua utilização para fins de ensino e de investigação científica assume efectivamente um papel essencial e insubstituível na didáctica das ciência das saúde, revestindo-se de incontestável importância no âmbito da formação geral e especializada dos profissionais da saúde e na evolução dos conhecimentos nesta área de saber.
Neste contexto, é lícita a dissecação de cadáveres, bem como a extracção de peças, tecidos ou órgão, de cidadãos nacionais, apátridas e estrangeiros residentes em Portugal, que venham a falecer no País, para fins de ensino e de investigação
."

Logo:
Para além do cruzamento enovelado com as alíneas anteriores, ficamos instruídos da licitude da "dissecação de cadáveres" e "remoção de peças" à luz da legislação.
Portuguesa! Abrangente de práticas em território nacional! O que é absolutamente vazio - para não dizer canalha.
Partindo do princípio que a exposição vem a Lisboa para estar patente à visita e não para engrossar as fileiras dos seus miserandos esfolados, é formalmente tão irrelevante fornecer este links ao internauta como os da Associação do Ponto-de-Cruz ou da Federação Portuguesa do Jogo da Bisca.
As questões fulcrais são estas: quem são estas pessoas - hoje já nem sequer cadáveres?; e cadáveres, como se "cadaverizaram"?, ou quem os "cadaverizou"?; de que morreram?; onde?; quando?; quem os triou?, como? e porquê?, para esta exposição. Questões que através de uma manobra ilusionista ôca ficam sem resposta.

Estes são cidadãos chineses.
Que morreram.
Cujo corpo não foi reclamado.
Que foram postos a render.
Fim.
...É o que reza a versão corrente.

E se não se sabe mais nada, não interessa a ninguém sabê-lo.
É que, para mim, "saber é ver". E se no nosso próprio Código Penal [aqui, em exemplo] é contemplado como Crime Contra a Sociedade o desrespeito pelos mortos (ao ponto de salvaguardar as suas cinzas ou mesmo o lugar onde repousem), passa-me absolutamente ao lado a preocupação mirone de saber detalhes do próprio
processo degradante de liofilização a que os cadáveres foram sujeitos, por ser outra a minha preocupação: a da possibilidade de a venda de bilhetes a preços régios, mais o merchandising que lhe está a reboque, poderem não só estar a facturar para os bolsos de uns espertos como a dar cobertura a verdades sinistras.


Leia-se com olhos de ver a discussão e a polémica que circula na net [aqui na Wikipedia, para facilitar] sobre a eventualidade de ligação desta exposição - e de outros fenómenos chineses contemporâneos - com o "genocídio cultural" comunista chinês, exercido por exemplo sobre o grupo de inspiração budista Falun Gong, que não é claro que não cruze perseguição política, encarceramento, tortura, execussões e tráfico de órgãos - como denuncia a Amnistia Internacional.

[A simbologia Falun Gong, cuja cruz não tem nenhuma ligação directa com a suástica nazi!]

Como eu o vejo, esta "exposição" não é um lugar recomendável.
Não é um programa de família.
Não, se me dignar reflectir sobre o lugar que quero ter na "tal" da "globalização".

Bem pode a propaganda organizar visitas para rebanhos de criancinhas, bem pode dar borlas aos dadores de sangue, ao INEM, às polícias, etc., bem pode ter patrocínios sonantes, bem pode estar a rebentar pelas costuras.

Não basta papaguear que "os espécimes nesta exposição foram tratados com a dignidade e respeito que merecem". Porque isso pode exactamente significar ou ter significado coisas horríveis.

Não basta ter a chancela de supostos não-monstros para deixar de ser monstruosa.

Não basta a euforia tétrica da visita maciça a este freak show para que deixe de sê-lo.
Não basta barrá-la com texto para que esta exposição itinerante passe a ser legítima - texto também eu aqui invento, e muito.

A verdade é que ninguém suportaria visitar uma exposição destas com cadáveres recolhidos segundo a tal Lei nacional.
Cadáveres de portugueses encontrados mortos no Rossio, em Lisboa, ou na Ribeira, no Porto.
A verdade é que ninguém suportaria - em nome de um altíssimo benefício abstracto da ciência, da pedagogia, do desenvolvimento e da cultura - ver expostos, esfolados, esventrados, decepados para gáudio do populacho sedento, o seu pai.
A sua mãe.
O feto do seu filho que não nasceu.

Massacrados em tratamentos industriais.
Colocados em poses de lazer aviltantes.
Postos a render dinheiro como os hobbits de borracha da exposição do Senhor dos Anéis.


Porque - canalhice refinada - esta "exposição" não é "para fins de ensino e de investigação científica" - como professor, não aceito que TUDO e nada seja "ensino"; esta "exposição" não é "essencial e insubstituível na didáctica das ciência das saúde" - é um mero Oceanário de entrada livre, sem lontras nem alforrecas, que quando partir não deixa órfãos; esta "exposição" naõ é "de incontestável importância no âmbito da formação geral e especializada dos profissionais da saúde e na evolução dos conhecimentos nesta área de saber" - já que essa formação não se faz em "exposições", não se faz no meio da turba tenebrosa de cuscos e tem os seus próprios cadáveres nas arcas das faculdades, que recolheu e manipula de acordo com o que a Lei prevê.

E a monstruosidade reside aí.
Em aceitarmos esta "exposição" como ela é. Sem a questionar.
Excepcionalmente isenta das regras do jogo.

A monstruosidade reside no facto de que como são mortos incógnitos,... não faz mal.
E mortos incógnitos do outro lado do mundo, menos perturbam ainda.
E como ficam tão giros a jogar à bola, tornam-se tournée e programa de fim-de-semana.

E com a China a meter-se pelos olhos dentro, assobiarmos para o lado, europeus, modernos, assépticos e cultos.

1 comentário:

Anónimo disse...

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