17/09/07

...E a China aqui tão perto - Parte II - Lama e Portugal

E a espiral do mundo enrola mais uma vez.

Tal como em em 2001, quando durante um "Governo" Guterres se instalou o pânico na formalidade socialista, de novo a vinda a Portugal de um inofensivo septuagenário provoca a convulsão própria a um País eternenamente em vias de crescimento, como o nosso.

Estive no Pavilhão Atlântico.


De forma egoísta - mais por mim que pelo Dalai Lama - mas tive de estar.

Não me seria possível perder a oportunidade de estar, assistir, testemunhar, de contribuir com a minha presença para um encontro com um dos mais admiráveis homens vivos.
Um dos homens mais queridos por um mundo porco e feio, e simultaneamente um dos indivíduos mais desconcertantes com que se possa contactar.

Estava quase cheia, a sala.



E foi com um enorme aplauso que a assistência recebeu o seu orador.

Durante cerca de duas horas, o Prémio Nobel da Paz desceu do pedestal em que alguns nobelizados de quintal que por aí andam se postam, dizendo com as letras todas que "só reconhecendo-nos como seres humanos simples e iguais, com todas as diferenças que nos distingam, tornamos possível o diálogo entre nós".

Um diálogo que de facto existiu. Alcançado de forma curiosa.
Ao vazio de um banal e decepcionante período de perguntas(quase todas inúteis)-respostas, contrapôs-se, nascida de avassaladora capacidade de compreensão da natureza humana, uma comunicação do Dalai Lama cuja singeleza, acerto e profundidade totalmente dispensariam as réplicas de um pavilhão inteiro em sintonia.

Não foi no Domingo que mais intimamente conheci o Dalai Lama.
Numa palestra sobre "O Poder do Bom Coração", foi enriquecedor mergulhar sem demagogia numa concepção diligente e emocionada sobre o Homem, a relação entre os homens e a viabilidade de uma vida em comum.
Mas aquilo que da sua superior sensibilidade e sabedoria mais pude recolher, fi-lo a partir de um livro lapidar para conhecer o pensamento do Dalai Lama-homem: Ética para o Novo Milénio. Leitura imprescindível se a humildade de cada um lhe permitir reconhecer a necessidade que temos de exemplos e de uma palavra de alento.

Se necessário, o testamento em vida de um homem superior que - contrariamente a outros certos nobelizados - ficará para a História.

O mais surpreendente do mega-evento-pop do Pavilhão Atlântico, foi constatar pessoalmente a desarmante naturalidade com qu
e um estranho tibetano de 72 anos, recebido em todos os cantos do mundo civilizado com honras próximas das de um chefe de estado, encara um encontro formal com milhares de pessoas que se deslocam para o ouvir, e lhes fala de absolutos vitais como o Amor, a Compaixão ou a Felicidade.

Com a simplicidade com se descalçou e sentou, sorriu e pediu ajuda para o seu inglês hesitante, com que se coçou e bocejou sem disfarce com o à-vontade de uma criança, admitiu esquecer-se do que estava a dizer (tal o tempo que mediava das "traduções"), elogiou a arquitectura do recinto como nunca tendo visto semelhante, e gracejou respondendo a rir que a memória que mais presente lhe ficava do encontro era a do intenso calor dos projectores sobre o palco.

Sabedoria, simplicidade, despojamento.
O exemplo.

E a escandaleira de paróquia.

Enoja-me e revolta-me que apenas um jornal à borla tenha feito primeira página do encontro do Atlântico: o Metro...

...E que as televisões tenham dado ao acontecimento uma atenção pouco maior que a de rodapé.
É que o preconceito e os comprometimentos não são exclusivos da desgraçada da política, que tem costas largas.

Ainda que a política não deixe de ser, objectivamente, uma rameira desgraçada.

Pode ser muito beato olhar hoje sobre o que se passa em Myanmar e gemer aijesuses, expressar solidariedade, dizer que "somos todos birmaneses", arranjar campanhas de fitinhas de cores, minutos de silêncio e tretas que tais.
Que não deixam de ser tretas.

Seja quando o Presidente Bush discursa sobre endurecimento de sanções, seja quando o senhor Pinto de Sousa, Presidente em exercício do Conselho Europeu, apela com vozinha trémula ao entendimentozinho entre as partes, a política dos homens barra a sua cara de lama e vergonha.

O Tibete foi invadido pela China comunista na década de 50.
Esventrado de forma sistemática, política e culturalmente durante décadas.
Tomado, mantido e subjugado pela força bruta.
À semelhança do que se passa na Birmânia; com a agravante do atropelo à soberania de um Estado pacífico.

Se na Birmânia foi reconhecido o papel no caminho da paz à Prémio Nobel Aung San Suu Kyi, foi pela sua pregação pela paz que Tenzin Gyatso, 14º Dalai Lama, recebeu a mesma distinção.
Em duas opções de vida paralelas, que a par da resistência não-violenta levam a indomável fome de determinação dos seus povos.

Mas a China, aqui tão perto, é aquilo que dela se vê.
E mais que isso não se admite.

Porque se Portugal está a criar "um novo pilar da diplomacia portuguesa", e ao pilar a China a suporta e sustenta, se as suas "maduras relações" colocam os países num nível de entendimento tão íntimo, porque o valor maior na "política a sério" é o dinheiro, torna-se natural que um País intelectualmente saloio como o nosso viva de gatas e se rebole na imundície com os mais sujos, que nos ditam comportamentos.


Se em 2001 o Dalai Lama foi tratado pelas instituições do Estado Português como um cão, fechada a porta do "Governo" Guterres, fechada a porta da Presidência Sampaio (que deu ao monge a esmola da paródia de se encontrar com ele às escondidas no Museu de Arte Antiga - que a imprensa afecta ousou insultuosamente chamar de "primeiro encontro do Prémio Nobel da Paz com uma alta figura do Estado português"), se à data apenas uma comissãozeca parlamentar (com excepção do PCP, atenção!) e a Autarquia de Lisboa se dignaram recebê-lo, o quadro repetiu-se decalcado em 2007, com a invenção de tapa-buracos para justificar o injustificável.

Com a pequena nuance de o consciencioso Presidente da Assembleia da República, dr Jaime Gama, que agora considerou o Dalai Lama digno da cortesia de uma recepção, ter sido o Ministro dos Negócios estrangeiros que em 2001 o ignorou, à sua mensagem, ao seu papel, ao seu símbolo de defesa dos Direitos Humanos massacrados na China.
Com a pequena curiosidade de desta vez não ser "um problema socialista" não dar cavaco ao Dalai Lama de visita a Portugal. É que o exercício da Presidência da República por um homem de direita não trouxe qualquer mais-valia à elevação do comportamento da política nacional.
...Deve ser do "pragmatismo".

E assim continuamos a ser como somos - ao contrário daqueles que nos deveriam inspirar (com os alemães), à semelhança de maus companheiros (como os russos) - pequenos, enfezados e débeis.

Tenzin Gyatso é um subversivo. O Tibete está protegido. A China tem razão.
E está dito.

Eu faço escolhas. Fui ao Pavilhão Atlântico.
De forma egoísta, tive de lá estar, marcar uma posição.
E fomos milhares.

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