12/06/08

O Punho Irlandês



"Europa"... "Ser europeu".
Ora aí está uma senhora ideia...

E convindo que não é nova, até tem um certo charme modernista.
A de, num mundo cada vez mais cruel e agressivo, uma galeria de Nações-Benetton-Unidas por um cordão umbilical atarrachado de civilidade, de virtude e de vontade comuns. Salvaguarda de um modo de vida, de uma cultura e de uma identidade partilhados pelos milhares de "irmãos continentais" unidos na segurança, na confiança e na garantias de desenvolvimento e de futuro.

A Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade finalmente estabelecidas de forma universal e perene num continente federado que as viu nascer...

Um quadro florido, em suma.


Acontece que a Europa não é bem isso.

Em rigor, aliás, a Europa não sabe o que é, rejeita a explicação plausível q
ue a resgataria da falta de identidade e antes corre cega e leda para a frente, perseguindo uma utopia - tão fiável como qualquer outra - tornada dogma e fatalidade.

Europa foi raptada por Júpiter. É a última coisa que se sabe dela ao certo
(E mesmo assim parece que isso do "rapto" ainda teve algo d
e consentido...)


Daí para cá, apenas cruzamentos de passagem, apenas paradoxos d
e encontro entre as peças do mosaico cultural de um continente outrora unificado sob Roma.

Principados, reinos, cidades-estado, nações, blocos, confederações,
impérios, desfilaram durante quinze séculos por uma Europa convulsa e disputada a talhões pela força do aço - dentro e fora de portas - muito longe de homogénea, muito longe de tranquila, berço de Guerras Mundiais.


Mas contra todas as expectativas farol hoje autoproclamado da pureza de intenções.
O continente pacífico. O continente civilizado. O continente diplomático. O continente higiénico. O continente cientificamente normalizado.


Nada dessas coisas passadistas e bafientas das matrizes culturais judaico-cristãs ou afins, infiltradas bolorentas nas suas raízes de uma espécie nova de árvo
re, produto de laboratório!
Europa que se fez a si mesma do esboço, nascida de um ponto zero, parida pela mão engenhosa e sábia de sombrios artesãos de uma confraria ex
clusiva.

"Que se a Europa não se une a abafam!..."

Ao ritmo contabilizado do alargamento de base a novos ex-miserandos, convidados à mesa farta que através de passes mágicos se transmutam de mão-de-obra em mercado.
...No que são logo rendidos, por outros que os p
erseguem, até aos confins do terreno, até às portas da Ásia.

Europa do leite e do mel.
A Europa da promessa.


Mas nada se toma sem preço.
E pela mão protectora, maternal e generosa, existe um preço a pagar.

Aceitar a sua lei, aceitar a sua força - maviosa e intoxicante - , depositar-lhe a vontade aos pés perfumados e ungidos da entidade divina que nos salva de nós mesmos.
Da nossa incapacidade, na nossa passividade, da nossa falta de brio. Da nossa falta de honra.

Pouco a pouco, pouco a pouco, o que se nos pede é o sangue, que ainda corre nas veias.
Que ainda faz de nós o que podemos vir a ser.

Que ninguém no-lo merece!
Horda de estranhos passantes.

É útil viver do cinismo. Da chacota e do desdém. (Para alguns lá o será.)
Mas o poder delegado pelo cidadão americano a um Estado ou à Nação, não tem o paralelo possível que já vi tentar montar. Aqui, nesta velha Europa. A mim, ser
vindo de exemplo.

Entalados que vivemos entre a traição a esta Pátria se a colocamos para trás e ao fascismo instantâneo de ousar um dia dizer que estará sempre primeiro.



O Tratado de Lisboa foi grande acontecimento.
Actualização em directo da capacidade dos magos de fingir lutar sorrindo, de fingir mudar mantendo, de fingir dar retirando.
Para o fundo da sacola do que se perde para sempre.

Quando um parceiro de blog escrevia no outro dia sobre o deve e o haver nesta família europeia de primos em décimo grau, foi certeiro e lapidar. Pouco restando a apor.

Cada vez releva menos "aquilo" de "ser português", na cegueira de ser "europeu".
Cada vez releva menos a História que nos precede - mais rica desta
Europa - pesado o beato êxtase de ser parte de uma Europa velha de cinquenta anos.
Haverá quem por nós fale. Quem nos alivie o fardo do contacto com o Mundo - povo de Mar e Viagem. Triste vida. Triste Fado. Vergonha para os que passaram.
Cada vez menos releva que se pense ou se deseje. Que se sonhe ou que se queira. Outros quererão por nós.

Já não temos o que é nosso. Já não mandamos em nós.
Num pesadelo diferido de uma vida delegada.

...E nós sem poder dizê-lo.



Ontem a Irlanda votou - parece que sem convicção (curioso este cancro do não ligarmos a nós, que vai alastrando mais fundo abrindo caminho ao terror...) - o destino da Europa.

A Irlanda, país rafeiro, católico, labrego e sem modos, único que sujeitou ao vexame da pública exibição a imaculada vontade dos cérebros da União.
Que ousou o atrevimento de conferir ao seu povo uma voz sobre o seu destino!

...E nos mantém em suspenso de um último golpe de asa para a cura de uma doença que se persiste em vender como cura de outro mal.


Pode bem ser que aconteça.

Que seja pelo punho irlandês que a Europa conquiste auto-estima e amor-próprio, pela única via possível: o orgulho nacional e a liberdade sem freio para escolher não estar sozinho.

Senão, como utopia, como concepção teórica, nunca deixará de sê-lo.

E quanto menos nascida de um sentimento popular que a baseie, vontade que a sustente, mais e mais estará exposta às suas contradições e suas inatas fraquezas.



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