08/07/08

Em Exame - Bonecadas


Acabou a saga da 1ª Fase dos Exames Nacionais de 9º Ano.
E com esse fim cessou a minha empresa na Classificação das Provas de Português.

Foi uma experiência muito enriquecedora, que não me importaria de contar.
Mas, como em qualquer caso, há histórias que valem a pena contar e outras que não.
Opto por isso por não contar a minha, totalmente banal, mas da maneira possível contar outra, muito mais ilustrativa.

A história de alguém que a viveu e a narrou a a
lguém, que a comentou com um vizinho, que a ela aludiu em conversa de café, que alguém confessou emprestada ao padre no Domingo passado como enchimento de fronha para evitar falar das suas faltas, que por sua vez foi ouvida por uma prima minha muito beata e muito cusca, que tão detalhadamente quanto possível ma tentou contar e que assim
aqui chega...



Certo dia um professor de Língua Portuguesa, Belmiro, foi chamado para corrigir Exames de 9º ano: ser Classificador.

Teve de ir a uma "
Unidade de Aferição" pré-definida integrar um alegre grupo reunido para uma pena comum. Em fase de ressaca do Ano Lectivo corrigir com minúcia de relojoeiro mais umas dezenas valentes de provas.

Sentaram-no e fizeram-no sentir-se à-vontade. Entre pares. Entre iguais. À volta dos papéis.
...Sem necessidade de lhe pedir um BI ou qualquer prova de que ele era ele e não o seu irmão gémeo, o Almiro, tal a sua cara era de professor, de se chamar Belmiro e de merecer na mão a confiança de um envelope cheio de documentos insubstituíveis.

Foi-lhe dito para intróito que pouco interessava o que ele pensasse no decurso da classificação porque os Critérios eram os do Ministério da Educação e seriam sempre estes a valer.
Ele agradeceu. Bem visto, também ninguém lhe pagava para pensar...

E, a seguir, que se tivesse dúvidas devia esclarecê-las com o seu Supervisor. Em caso nenhum deveria contactar o GAVE
(Gabinete de Avaliação Educacional).
Deveria aproveitar o facto de ter ao seu dispor uma pessoa com superpoderes e tirar partido da sua supervisão.

E agradeceu de novo.
(Mais tarde, sentindo-se desnorteado pela supervisão do seu supervisor, tentou contactar alguém fora da esfera de cristal e acabou por confirmar que no GAVE não havia mesmo ninguém disposto a ouvi-lo.)


Foi então informado de que tinha uma semana e um meio-dia para entregar classificada a sua resma de Exames...
(Apesar de o seu supervisor o ter
inicialmente informado de que teria mais um dia que aqueles e de saber que outros grupos a funcionar noutros lados iriam dispor de mais três.)

...E que a segunda reunião, para "
concertar divergências" através de exercícios de "dupla classificação", seria na véspera da data de entrega - quando, tudo correndo bem, já deveriam os exames estar todos mais que classificados, passados a tinta, apagados de anotações e prontos para entregar na manhã seguinte.



Puseram-lhe então à frente os Critérios de Classificação do Ministério.
Que o surpreenderam.

Ficou a saber que, como medida de combate à resposta aleatória por parte dos examinandos, no Item 1 do Grupo I - "Item de resposta fechada de verdadeiro ou falso" - o Ministério previra classificação de 0 pontos caso o aluno indicasse as afirmações como todas "verdadeiras" ou todas "falsas" (pág.2).
...Com a curiosidade de o enunciado da prova não informar os seus realizadores de que essas hipóteses não só estavam fora de questão como acarretariam a anulação da resposta para efeitos de classificação.


Ficou a saber que em cinco das questões da Prova - "Itens de resposta aberta" - havia a calcular o "peso percentual ponderado" da "correcção linguística" da resposta dos alunos no total da cotação prevista, numa razão nunca superior a "40%"
(pág.3).
...Mas que em duas delas não era possível através desse cálculo atribuir a nenhum aluno cotação máxima à "correcção linguística" - 2 pontos - uma vez que tal prefaria irregularmente 50% do total previsto para a questão - 4 pontos
(pág.6)!
...Ainda que a grelha digital em Excel fornecida pelo Ministério - e a entregar preenchida no final da tarefa do classificador - surpreendentemente o permitisse sem problemas...
...Sendo que sempre o classificador estaria a matar a cabeça com ponderações de
"correcção linguística" que para o Ministério representavam uns ridículos 12% da cotação total da Prova.

E ficou a saber também que no Grupo III, de "Resposta aberta de transformação", em que se pedia ao jovem "um texto narrativo" sobre "o valor do sorriso" ora era admissível que ele apenas desse resposta a uma das exigências, ora não.
Enquanto nos "Critérios Gerais"
(pág.4) se determinava uma "classificação com zero pontos" para uma resposta que não respeitasse a "tipologia" e a "temática" indicadas, os "Critérios Específicos" (pág.12) mandavam atribuir 3 pontos a uma resposta se ela cumprisse "globalmente uma das instruções" - algo do género: "um texto narrativo" sobre o Capuchinho Vermelho ou um soneto sobre "o valor do sorriso" - aceitando-a para classificação nos restantes parâmetros.

...Mas Critérios de Correcção entregues... eram Critérios de Correcção aplicados.
Ponto final. E bico calado.

...Que é isto que faz de nós uns homens.
(Ou não; dependendo do género de partida.)



(Admito que o entusiasmo de contar pormenores possa torná-los redundantes, uma vez que qualquer pessoa curiosa já recolheu esta mesma informação na consulta livre on-line do rol de documentos públicos na base desta narrativa...
Mas peço condescendência.
Tenho de lhe dar o colorido do relato...)



Seguiram-se
serões inteiros no lar, em redor das Provas...

Primeiro,
com o professor Belmiro a trancar a vermelho - com canetas que ele comprou - as mais de 6.000 linhas de folhas de prova preenchidas pelos alunos.
Depois, a contar nas provas que lhe calharam, uma por uma, pica-pica, as mais de 11.000 palavras das respostas dos jovens aos Itens I-8 e III, para apurar se descontaria
(ridiculamente) - no conjunto! - o máximo de 3 pontos em 100, por desvios às extensões de texto pedidas (págs.9 e 13)...

...A que se sucedeu o
clímax-intelectual-em-maratona da classificação das dezenas de provas recebidas.
Realizadas por desgraçados de miúdos com o fusível já semi-queimado, com um pé em férias e bem conscientes de que o Exame - o de Língua Portuguesa como o de Matemática - para o bem ou para o mal
apenas impactaria na sua nota se o resultado nele obtido tivesse uma diferença de dois pontos da nota atribuída na frequência à disciplina...



Tenho bem a noção de que agora é que a história estava a ficar boa... Mas lamento ter de ficar por aqui. Não me é possível ir mais longe.

Também eu estou à espera que a minha prima me conte o resto, para saber como acaba.
Ontem estávamos a falar e acho que ficou sem saldo ou assim...


Paciência.

Mas apesar de tudo estou-lhe muito grato.
Graças a ela pude contar uma história sobre Exames Nacionais.
Um tema do meu carinho.
Porque vendo as coisas como elas são nunca poderia contar a minha própria história: a Norma 2, no ponto 47.2, alínea
a), obriga-me a "manter sigilo em relação a todo o processo de classificação das provas de exame", o que me cortava a pernas...

(Nosso Senhor faz as coisas muito bem feitas.)

Abençoada prima!
É para isto que serve a família.

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