03/01/07

Falar Claro - III

Soltar os cães.

Era inevitável...

Que numa situação em que a apresentação de argumentos racionais e honestos se impunha, fossem as motivações mais baixas e as razões mais estúpidas as que surgiriam primeiro (e só?).

Era inevitável.

Mas a inevitabilidade não pode isentar da crítica.
Da censura a uma maneira de argumentar ofensiva - por vezes deliberada e inadmissivelmente ofensiva - em que tanto se pretende fazer valer argumentos, como fazê-los valer a qualquer preço, ou esmagar quem se nos opõe com estúpidos e violentos argumentos lapidares.

Eis dois bons (!) exemplos de como estamos a "começar" mal. De como se confirmam as péssimas expectativas. E de como o pior está ainda para vir.

Por um lado "Contribuir com os meus impostos para financiar clínicas de aborto? Não obrigada.".
Ficamos todos a saber, logo à partida, que o argumento do "ginecídio" - como alguém já lhe chamou - também é arma do "Não". Este é um "assunto de mulheres" em que os homens não devem meter a colherada, porque são elas as "obrigadas", não "eles" e acabou-se!
Fazendo apelo a um sentimento desprezível dificilmente compatível com uma temática como o aborto (mas tão politicamente em voga, tão popularucho e tão demagógico): o do pecuniarismo, procura-se a repulsa pelo aborto. Curto e grosso.
"O quê? Quanto é que isso me vai custar?!... Então voto contra!"
Para alguém que como eu se afirma frontalmente contra o aborto - contra o conceito, contra a prática, contra a legitimação, contra a sua promoção - é inadmissível que ao valer tudo valha "discutir" assim. Descer tão baixo.
Segundo uma lógica tão socrática devemos perguntar quanto custam um IPO para perceber se vale a pena? Ou quanto custa uma unidade de queimados ou uma de ortopedia? ...Exactamente!! Quanto custa uma maternidade, um Centro de Saúde ou um CATUS? É assim que se quer discutir um País, uma sociedade, uma cultura de povo? É "isto" que queremos ser?
...E será que depois de aprovada (esperemos que não) uma abertura do período legal para realização de aborto, alguém propõe que se recuse o direito a uma intervenção médica a uma mulher que o solicite no respeito pela lei (por mais rejeitável que seja o conceito)? Pelo singelo motivo de "me sair caro"?...

Por outro lado temos o "Sim. Para acabar com a humilhação." .
Outro atropelo à seriedade que se desejaria para um debate destes: o argumento da necessidade de uma "liberalização" da lei do aborto, motivada exactamente pela inexistência... da lei existente.
Há neste momento em vigor legislação que impõe limites à prática do aborto. Permitindo-o numas circunstâncias, noutras não. Há penalizações previstas na lei para o caso do seu incumprimento. E tanto os cidadãos como os agentes policiais ou judiciais vivem e agem no seu pleno conhecimento. Como em qualquer outro domínio.
Mas em Portugal nada é normal.
Então: a lei que existe é má porque é demasiado rígida e penaliza um acto desesperado, sem alternativa.
...Pelo que deveria ser mais branda nos limites e nas penalizações do recurso ao aborto.
Mas ao mesmo tempo, a lei é má: é demasiado branda e não prevê, em todo o seu alcance, a penalização equitativa e justa de todos os implicados num (crime?/ilícito? de) aborto, exercendo uma repressão descriminatória sobre as mulheres que abortam.
A lei, aliás, é uma vergonha nacional. Estando em vigor há um ror de tempo e não sendo aplicada por um sistema de saúde, judicial e social que faz dela letra morta, cobre-nos a todos de ridículo.
...Mas tudo menos aplicá-la!, sendo um instrumento de mentalidade anacrónico e violentador de direitos básicos de cidadania.
Portanto, é acabar com ela de vez!...
...Bom, não é bem acabar com a lei...
...E também não é bem torná-la mais equitativa, estendendo a sanção do acto a todos os seus coadjuvantes (os interventores no aborto, os angariadores, os pais, etc.)...
...Nem sequer abolir a tipificação do crime?/ilícito? perante a lei, para que mais nenhuma mulher seja sancionada por causa de um acto sem alternativa e desesperado (é incompreensível conferir a esta questão uma importância libertária nuclear e aceitar mantê-la na categoria dos comportamentos transgressores sujeitos a sanção em tribunal!...)...
...A "solução" para o "fim" da humilhação das mulheres que fazem um aborto, o objectivo da realização do referendo de 11 de Fevereiro é tão-só mexer num limite temporal de dez semanas para a sua realização.
Abrir a janela de "oportunidade" e salvação à cadeia, que se concede que se feche às 10 semanas e um dia...

Eis a distintas vitórias almejadas e os meios nelas empregues...

Os contendores largaram uns sobre os outros os cães da argumentação.
Para haver rebuliço, ganidos e algum sangue a correr.

Quem é que precisa disto?

1 comentário:

dia-a-dia disse...

Eles (os contend(t)ores de trampa)! Como de pão para a boca...

:(