10/03/07

Crónica da morte da América

A maior democracia do mundo viu morrer o seu ícone pop.

O Capitão América, abatido a tiro, esvai-se no sangue simbólico de uma Nação, sucumbindo às incessantes investidas dos seus inimigos.

(...Ok, sei que este exercício mental é difícil para muitos que, vivendo num País cujo último ícone patriótico conhecido foi o Zé oitocentista do Bordalo Pinheiro,
nem sabem nem querem saber o que isto é.
Mas esses, façam lá um esforço, ...ou então podem sempre mudar de canal.
De qualquer forma, não é problema meu.)

A notícia da morte partiu dos Estados Unidos e depressa chegou a todo o lado!
Mas por um efeito-dominó que se encarrega de diluir os significados antes deles poderem ser apreendidos, o que nos chega são ecos difusos e não interpretações relevantes do óbito.

Com a II Guerra Mundial a correr no campo de batalha, o nascimento do Capitão América corporizava em 1941 a vontade latente do povo americano de desequilibrar as forças do Eixo, entrando de vez num conflito que não sentiam como uma ameaça exclusiva à Europa.

Foi esse espírito heróico, patriótico e democrático que presidiu ao seu aparecimento.
E que é recuperado até hoje.

Acabada a Grande Guerra, as guerras do Capitão América perderam interesse faltas de um adversário épico à altura, e a personagem acaba por cair num parênteses histórico.

...Até ao crescendo da Guerra Fria.
De novo - titubeantemente em 1953 e em definitivo em 1964 - o Capitão América foi chamado a encarnar nas pranchas os valores do povo americano.

Infelizmente, pelo que isso possa representar do palco mundial, o herói nunca mais desapareceu.
Quer enfrentando ameaças domésticas à paz e à ordem pelas mãos de americanos - fazendo prevalecer o valor primordial do patriotismo...

.
...Quer ameaças estrangeiras ao estilo de vida americano, pelas mãos de inimigos globais - elevando, acima da legitimidade da resposta emotiva, a ética de uma filosofia de civilização.

Os comics sempre foram um espelho mágico, em que a realidade anamorfoseada se reflecte nua. Não só no caso do Capitão América.
Razão pela qual também o cenário de pesadelo americano pós-11de Setembro teve contrapartida directa dos quadradinhos.
Também o "PATRIOT Act", segundo o qual a América aceitou suspender temporariamente a inviolabilidade das suas liberdades cívicas constitucionais em nome da salvaguarda da segurança comum, perante a ameaça terrorista - na vigilância, na investigação, na repressão. Uma América estupefacta e céptica com a cedência nos seus princípios ao jogo do inimigo.

Numa tentativa controlacionista desesperada o Governo dos Estados Unidos produziu o "Superhuman Registration Act", como forma de minorar os potenciais riscos para a segurança interna de uma Nação, provenientes de super-heróis com incontroláveis poderes de destruição maciça.
Segundo o "Registration Act", cada super-herói ficaria obrigado a revelar a identidade secreta, a circular sem máscara e a colocar-se directamente sob o poder federal.
Directivas em que a S.H.I.E.L.D. de Nick Fury se empenhou em fazer cumprir.

Apenas o Capitão América, à cabeça de um grupo de heróis cépticos e perplexos, não aceitou a pretensão do "Registration Act"; eclodindo a Guerra Civil no universo Marvel.

A Nação mais poderosa da Terra.
A maior democracia do mundo.
Dividida no pilar da sua unidade. Sitiada . Receosa. Perplexa e confusa.
...Nos comics e não só.

Tempo de decisões patrióticas e abnegadas.
Assim Steve Rogers, Capitão América, se desmascara e se entrega às autoridades como foragido à lei.
Sendo baleado mortalmente


Na morte simbólica do ícone do americanismo, pouco será por acaso.

Um Capitão América morto por um sniper, após décadas de lutas colossais corpo-a-corpo com os piores vilões. Num mundo em que o confronto bélico directo perde eficácia e mais se rege pela lei do dano cirúrgico inesperado e fulminante.
Um Capitão América morto nos degraus exteriores de um edifício público. Em plena rua. No coração do quotidiano americano. Uma morte próxima, familiar, íntima, distante dos palcos distantes onde inimigos da Nação eram mantidos longínquos.
Um Capitão América morto sem máscara. Não sem disfarce, mas sem identidade, sem essência. Descaracterizado, reduzido ao consenso e à homogeneidade.
Um Capitão América morto algemado atrás das costas. Voluntariamente impotente. Rendido a um suposto bem comum, a uma evidência benéfica discutível.

A crónica contemporânea de uma América de escolhas dolorosas. Mas por força das circunstâncias cada vez menos uma América com opções em aberto.
Uma América cuja morte é narrada no outro lado do espelho.

Enleada no perigo maior de perder a sua essência vital para não peder a sua segurança.

Uma América anamorfoseada.




(Uma sentida homenagem às minhas pobres páginas impressas, digitalizadas para esta ingrata função...)

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